Quantas vezes você já passou por aqui?

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Discalculia do Desenvolvimento


 


Um grande número de crianças, adolescentes e adultos têm atitudes negativas em relação à matemática. Em muitos casos as atitudes negativas podem estar relacionadas à fobia ou ansiedade matemática, podendo, inclusive, ser atribuídas a experiências traumáticas com a aprendizagem desta matéria.
Uma parcela significativa de crianças em idade escolar apresenta, entretanto, dificuldades persistentes na aprendizagem da matemática. Quando as dificuldades persistentes na aprendizagem da matemática não podem ser atribuídas a fatores extrínsecos, tais como déficits intelectuais, neuromotores ou neurossensoriais, nem a dificuldades emocionais, falta de estimulação ou experiências educacionais inadequadas, é realizado o diagnóstico de transtorno específico de aprendizagem da matemática (CID-010 F81.2) ou discalculia do desenvolvimento.
A discalculia do desenvolvimento compromete cerca de 3% a 6% da população em idade escolar, sendo diagnosticada com base em uma avaliação neuropsicológica criteriosa que exclui a influência primária de fatores extrínsecos. Além da exclusão da influência primária de outras causas, o diagnóstico de discalculia do desenvolvimento exige que o déficit seja grave e persistente.
A gravidade pode ser avaliada por meio de teste padronizados de desempenho escolar, tais como o TDE (Teste de Desempenho Escolar). Diversos critérios podem ser adotados. Geralmente o desempenho deve situar-se abaixo do percentil 5 ou deve haver uma discrepância de dois anos entre o nível de desempenho da criança e a série escolar que ela freqüente. Um outro critério frequentemente adotado, é que haja uma discrepância de 1 a 2 desvios-padrões entre o desempenho em matemática e a inteligência da criança.
A persistência das dificuldades é caracterizada pela sua observação em dois momentos distintos com um intervalo de pelo menos um ano, ou então, pela ausência de resposta satisfatória a intervenções psicopedagógicas  bem planejadas e bem conduzidas.
A discalculia do desenvolvimento deve ser diferenciada de uma outra categoria frequente utilizada em pesquisas, as dificuldades de aprendizagem em matemática. Muitos pesquisadores investigam o desempenho de crianças com desempenho baixo em matemática, geralmente abaixo do percentil 25 ou até mesmo do percentil 35, sem caracterizar mais precisamente a etiologia e as características cognitivas associadas. Muitas das crianças com dificuldades de aprendizagem da matemática apresentam discalculia, mas nem todas. As pesquisas ainda não identificaram se existem diferenças qualitativas de desempenho aritmético e cognitivo enre as crianças com dificuldades de aprendizagem da matemática e aquelas com discalculia.
 
 

A discalculia do desenvolvimento consiste, fundamentalmente em uma dificuldade crônica básica de aprender a aritmética. Os sintomas geralmente se manifestam já na idade pré-escolar, quando a criança tem dificuldades para aprender a contar, bem como a utilizar outros conceitos numéricos ou relacionados à estimação de quantidades. Além da dificuldade com a contagem a criança pode ter dificuldades com a aprendizagem dos conceitos (quantificadores) de mais e de menos, pouco ou muito, antes e depois, com a aquisição das noções de tempo e, muitas vezes, também com as noções de espaço.
Uma das características principais dos indivíduos com discalculia é a dificuldade de aprender a tabuada. Algumas crianças simplesmente têm muita dificuldade para memorizar os fatos aritméticos. Estas crianças persistem contando nos dedos, mesmo quando isto não é funcional. Quase todas as crianças aprendem a contar nos dedos. Mas, depois de um certo tempo, a contagem nos dedos é indicativa de dificuldades.
A aritmética é uma área do conhecimento organizada hierarquicamente. A aquisição de novos conhecimentos em aritmética depende da consolidação de conceitos e procedimentos previamente adquiridos. As dificuldades na aquisição dos princípios da contagem retardam a intuição das operações aritméticas elementares. A adição é inferida a partir da contagem. A adição corresponde a contar dois conjuntos em sequência. As outras operações são todas derivadas da adição. A multiplicação consiste em uma adição repetida, enquanto a subtração corresponde ao inverso da adição etc.
A dificuldade na aquisição da tabuada é extremamente incapacitante, muitas vezes impedindo que o indivíduo progrida na aquisição de conceitos e procedimentos mais complexos tais como o valor posicional, essencial à aquisição do sistema arábico, ou os algoritmos de cálculo no sistema arábico.
Os dados de pesquisa indicam que a discalculia do desenvolvimento é uma característica intrínseca ao indivíduo e não resultado da ação de outros fatores. Mesmo em famílias vivendo sob condições de privação cultural, econômica e afetiva é possível identificar algumas crianças que apresentam dificuldades de aprendizagem da aritmética enquanto seus irmãos têm um desempenho adequado. Estudos com gêmeos também mostra que a herdabilidade da habilidade aritmética é alta.
Estudos com indivíduos portadores de síndromes neurodesenvolvimentais mostram que o fenótipo de muitas síndromes adquiridas ou genéticas se caracteriza por dificuldades relativamente específicas na aprendizagem da aritmética. A síndrome fetal alcoólica é a principal causa ambiental de discalculia do desenvolvimento. Por outro lado, as dificuldades de aprendizagem da aritmética fazem parte do fenótipo de diversas doenças genéticas, tais como hidrocefalia congênica precocemente tratada, síndrome de Williams, síndrome do sítio frágil do cromossoma X em meninas, síndrome de Sotos, síndrome de Prader-Willi, bem como as síndromes de Turner e velocardiofacial.
Estudos com neuroimagem estrutural e funcional em indivíduos com síndromes cujo fenótipo se caracteriza por discalculia mostram que as dificuldades de aprendizagem da matemática podem ser atribuídas a alterações na conectividade, estrutura e função de regiões do córtex parietal, bilateralmente. As lesões destas áreas do córtex parietal, principalmente o sulco intraprarietal bilateralmente, mas também o giro angular esquerdo, são responsáveis pelo surgimento de acalculia em adultos com lesão cerebral. Ou seja, pela perda da habilidade de processar números e calcular.
Os estudos de neuroimagem funcional em crianças com discalculia do desenvolvimento não-associada a síndromes também mostram alterações funcionais em áreas do córtex parietal e suas conexões. Os dados neuropsicológicos, neurocognitivos, a associação com síndromes genéticas e os estudos da herdabilidade das habilidades aritméticas indicam, portanto, que a discalculia do desenvolvimento é uma entidade neurobiologicamente baseada e de origem genética e não uma consequência exclusiva da experiência de vida.
A influência de fatores genéticos não exclui a importância de fatores ambientais, tais como a estimulação pela família, a qualidade da educação ou a atitude do indivíduo em relação à matemática. Nos casos de discalculia associada a síndrome a importância dos fatores ambientais é menor. Nos casos de discalculia não associados a síndromes, cresce a importância dos fatores experienciais.
Na psicologia e medicina contemporâneas se trabalha com um modelo etiológico denominado epigenético. Ou seja, as características fenotípicas individuais, inclusive suas personalidade e habilidades cognitivas, são o produto de um complexo processo de interação entre influências genéticas e ambientais. No caso de síndromes genéticas, geralmente são envolvidos um número relativamente reduzido de genes, de um até cerca de três ou quatro dezenas.
No caso de discalculia não relacionada a síndromes o número de genes envolvidos é muito maior, da ordem de até uma ou duas centenas. Os efeitos de cada um dos genes envolvidos é  pequeno, mas os efeitos vão se adicionando ou, até mesmo, interagindo de formas complexas. No caso da discalculia não-relacionada a síndromes a influência da experiência de vida é maior. As influências genéticas podem ser concebidas como fatores de risco que tornam ou indivíduo mais vulnerável a ter uma dificuldade de aprendizagem. A interação entre os genes e o ambiente atua de forma probabilística na determinação do desfecho final. O fato de um indivíduo ser mais vulnerável a uma dada condição ou comportamento não implica em um determinismo absoluto, apenas em risco. O ambiente pode atuar de diversas formas para reduzir ou amplificar as dificuldades.
O diagnóstico de discalculia do desenvolvimento é extremamente importante. É apenas através do diagnóstico correto que se torna possível planejar e implementar as intervenções necessárias para prevenir ou minorar as consequências negativas da dificuldade em matemática.
A discalculia do desenvolvimento se associa a diversas consequências negativas a longo prazo. Os adolescentes com discalculia persistente apresentam maior frequência de transtornos externalizantes (hiperatividade, comportamento antisocial) ou internalizantes (sintomas de ansiedade, depressão, baixa auto-estima) de comportamento.
A dificuldade crônica de aprendizagem desmotiva o indivíduo e contribui para que ele abane precocemente a escola, reduzindo assim sua qualificação acadêmica e profissional. Em adultos jovens foi observado que as dificuldades persistentes com a matemática são preditivas de menor renda e maior probabilidade de desemprego, mesmo quando a habilidade de leitura é estatisticamente controlada.
Os dados de pesquisa disponíveis indicam, portanto, que a discalculia do desenvolvimento é um transtorno que compromete uma parecela expressiva da população em desenvolvimento e economicamente ativa, revestindo-se de enorme potencial para prejudicar o desenvolvimento, bem-estar e realização pessoal.
A fisiopatologia, ou mecanismos pelos quais as disfunções neuromaturativas predispõem o indivíduo a ter dificuldades de aprendizagem da matemática são o foco de intensas pesquisas no momento. Os dados de pesquisa mostram que a discalculia do desenvolvimento é uma entidade heterogênea, associando-se comorbidamente a uma série de outros transtornos, com diversos mecanismos cognitivos implicados.

Cerca de dois terços das crianças com discalculia apresenta comorbidades, ou seja, a presença simultânea de outras condições neurodesenvolvimentais. As principais comorbidades são com o transtorno do déficit de atenção por hiperatividade (TDAH) e com as dificuldades de aprendizagem da leitura e esrita (dislexia e disgrafia do desenvolvimento). A comorbidade com TDAH indica que déficits nas funções executivas e na memória de trabalho podem ser implicados nas dificuldades. Por outro lado, a associação com dislexia sugere que, em parte, as dificuldades podem ser atribuíveis a deficits no processamento fonológico, principalmente consciência fonêmica.
A discalculia do desenvolvimento tem também uma relação estreita com o transtorno não-verbal de aprendizagem (TNVA). O TNVA compromete cerca de 1% da população em idade escolar e consiste de dificuldades crônicas de aprendizagem caracterizadas por alterações na coordenação motora e processos somatosensoriais, dificuldades visoespaciais e discalculia. As dificuldades no TNVA são atribuíveis a um déficit na capacidade do indivíduo fazer inferências não-verbais que compromete seu desenvolvimento em diversos domínios. Comprometimentos secundários são observados também na área da percepção e auto-regulação emocional e do comportamento e cognição social, constituindo um fator de risco para desadaptação social, incapacidade. O TNVA caracteriza o fenótipo cognitivo das diversas síndromes que incluem a discalculia entre os seus sintomas.
O estudo das comorbidades indica que dificuldades com o controle executivo, memoria de trabalho, habilidades fonológicas e visoespaciasi são todos fatores cognitivos relevantes para a compreensão dos mecanismos cognitivos subjacentes à discalculia. Além destes mecanismos tradicionalmente identificados, uma hipótese contemporânea é que a discalculia do desenvolvimento pode ser parcialmente ou ao menos em alguns casos atribuível a um déficit em um sistema primitivo e não-simbólico de representação de magnitudes (vide post abaixo sobre modelos cognitivos). A pesquisa sobre os mecanismos cognitivos na discalculia é uma questão complexa, desafiadora e extremamente relevante do ponto de vistá prático.
A relevância clínica, educacional e social da discalculia indica que mais pesquisas são necessárias para identificar suas causas, desenvolver métodos de diagnóstico e reconhecimento precoce e, principalmente, programas eficientes de intervenção para reverter ou minorar as dificuldades ou seu impacto.
O desenvolvimento de métodos de diagnóstico e intervenção eficazes requer uma estreita colaboração entre profissionais de saúde e educadores. As pesquisas sobre diagnóstico e intervenção podem se beneficiar da caracterização dos mecanismos cognitivos e genético-moleculares subjacentes às dificuldades.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário