Um grande número de
crianças, adolescentes e adultos têm atitudes negativas em relação à
matemática. Em muitos casos as atitudes negativas podem estar relacionadas à
fobia ou ansiedade matemática, podendo, inclusive, ser atribuídas a
experiências traumáticas com a aprendizagem desta matéria.
Uma parcela significativa de
crianças em idade escolar apresenta, entretanto, dificuldades persistentes na
aprendizagem da matemática. Quando as dificuldades persistentes na aprendizagem
da matemática não podem ser atribuídas a fatores extrínsecos, tais como
déficits intelectuais, neuromotores ou neurossensoriais, nem a dificuldades
emocionais, falta de estimulação ou experiências educacionais inadequadas, é
realizado o diagnóstico de transtorno específico de aprendizagem da matemática
(CID-010 F81.2) ou discalculia do desenvolvimento.
A discalculia do
desenvolvimento compromete cerca de 3% a 6% da população em idade escolar,
sendo diagnosticada com base em uma avaliação neuropsicológica criteriosa que
exclui a influência primária de fatores extrínsecos. Além da exclusão da
influência primária de outras causas, o diagnóstico de discalculia do
desenvolvimento exige que o déficit seja grave e persistente.
A gravidade pode ser
avaliada por meio de teste padronizados de desempenho escolar, tais como o TDE
(Teste de Desempenho Escolar). Diversos critérios podem ser adotados.
Geralmente o desempenho deve situar-se abaixo do percentil 5 ou deve haver uma
discrepância de dois anos entre o nível de desempenho da criança e a série
escolar que ela freqüente. Um outro critério frequentemente adotado, é que haja
uma discrepância de 1 a 2 desvios-padrões entre o desempenho em matemática e a
inteligência da criança.
A persistência das dificuldades
é caracterizada pela sua observação em dois momentos distintos com um intervalo
de pelo menos um ano, ou então, pela ausência de resposta satisfatória a
intervenções psicopedagógicas bem
planejadas e bem conduzidas.
A discalculia do desenvolvimento
deve ser diferenciada de uma outra categoria frequente utilizada em pesquisas,
as dificuldades de aprendizagem em matemática. Muitos pesquisadores investigam
o desempenho de crianças com desempenho baixo em matemática, geralmente abaixo
do percentil 25 ou até mesmo do percentil 35, sem caracterizar mais precisamente
a etiologia e as características cognitivas associadas. Muitas das crianças com
dificuldades de aprendizagem da matemática apresentam discalculia, mas nem
todas. As pesquisas ainda não identificaram se existem diferenças qualitativas
de desempenho aritmético e cognitivo enre as crianças com dificuldades de
aprendizagem da matemática e aquelas com discalculia.
A discalculia do
desenvolvimento consiste, fundamentalmente em uma dificuldade crônica básica de
aprender a aritmética. Os sintomas geralmente se manifestam já na idade
pré-escolar, quando a criança tem dificuldades para aprender a contar, bem como
a utilizar outros conceitos numéricos ou relacionados à estimação de
quantidades. Além da dificuldade com a contagem a criança pode ter dificuldades
com a aprendizagem dos conceitos (quantificadores) de mais e de menos, pouco ou
muito, antes e depois, com a aquisição das noções de tempo e, muitas vezes,
também com as noções de espaço.
Uma das características
principais dos indivíduos com discalculia é a dificuldade de aprender a
tabuada. Algumas crianças simplesmente têm muita dificuldade para memorizar os
fatos aritméticos. Estas crianças persistem contando nos dedos, mesmo quando
isto não é funcional. Quase todas as crianças aprendem a contar nos dedos. Mas,
depois de um certo tempo, a contagem nos dedos é indicativa de dificuldades.
A aritmética é uma área do
conhecimento organizada hierarquicamente. A aquisição de novos conhecimentos em
aritmética depende da consolidação de conceitos e procedimentos previamente
adquiridos. As dificuldades na aquisição dos princípios da contagem retardam a
intuição das operações aritméticas elementares. A adição é inferida a partir da
contagem. A adição corresponde a contar dois conjuntos em sequência. As outras
operações são todas derivadas da adição. A multiplicação consiste em uma adição
repetida, enquanto a subtração corresponde ao inverso da adição etc.
A dificuldade na aquisição
da tabuada é extremamente incapacitante, muitas vezes impedindo que o indivíduo
progrida na aquisição de conceitos e procedimentos mais complexos tais como o
valor posicional, essencial à aquisição do sistema arábico, ou os algoritmos de
cálculo no sistema arábico.
Os dados de pesquisa indicam
que a discalculia do desenvolvimento é uma característica intrínseca ao
indivíduo e não resultado da ação de outros fatores. Mesmo em famílias vivendo
sob condições de privação cultural, econômica e afetiva é possível identificar
algumas crianças que apresentam dificuldades de aprendizagem da aritmética
enquanto seus irmãos têm um desempenho adequado. Estudos com gêmeos também
mostra que a herdabilidade da habilidade aritmética é alta.
Estudos com indivíduos
portadores de síndromes neurodesenvolvimentais mostram que o fenótipo de muitas
síndromes adquiridas ou genéticas se caracteriza por dificuldades relativamente
específicas na aprendizagem da aritmética. A síndrome fetal alcoólica é a
principal causa ambiental de discalculia do desenvolvimento. Por outro lado, as
dificuldades de aprendizagem da aritmética fazem parte do fenótipo de diversas
doenças genéticas, tais como hidrocefalia congênica precocemente tratada,
síndrome de Williams, síndrome do sítio frágil do cromossoma X em meninas,
síndrome de Sotos, síndrome de Prader-Willi, bem como as síndromes de Turner e
velocardiofacial.
Estudos com neuroimagem
estrutural e funcional em indivíduos com síndromes cujo fenótipo se caracteriza
por discalculia mostram que as dificuldades de aprendizagem da matemática podem
ser atribuídas a alterações na conectividade, estrutura e função de regiões do
córtex parietal, bilateralmente. As lesões destas áreas do córtex parietal,
principalmente o sulco intraprarietal bilateralmente, mas também o giro angular
esquerdo, são responsáveis pelo surgimento de acalculia em adultos com lesão
cerebral. Ou seja, pela perda da habilidade de processar números e calcular.
Os estudos de neuroimagem
funcional em crianças com discalculia do desenvolvimento não-associada a
síndromes também mostram alterações funcionais em áreas do córtex parietal e
suas conexões. Os dados neuropsicológicos, neurocognitivos, a associação com
síndromes genéticas e os estudos da herdabilidade das habilidades aritméticas
indicam, portanto, que a discalculia do desenvolvimento é uma entidade
neurobiologicamente baseada e de origem genética e não uma consequência
exclusiva da experiência de vida.
A influência de fatores
genéticos não exclui a importância de fatores ambientais, tais como a
estimulação pela família, a qualidade da educação ou a atitude do indivíduo em
relação à matemática. Nos casos de discalculia associada a síndrome a importância
dos fatores ambientais é menor. Nos casos de discalculia não associados a
síndromes, cresce a importância dos fatores experienciais.
Na psicologia e medicina
contemporâneas se trabalha com um modelo etiológico denominado epigenético. Ou
seja, as características fenotípicas individuais, inclusive suas personalidade
e habilidades cognitivas, são o produto de um complexo processo de interação
entre influências genéticas e ambientais. No
caso de síndromes genéticas, geralmente são envolvidos um número relativamente
reduzido de genes, de um até cerca de três ou quatro dezenas.
No caso de discalculia não
relacionada a síndromes o número de genes envolvidos é muito maior, da ordem de
até uma ou duas centenas. Os efeitos de cada um dos genes envolvidos é pequeno, mas os efeitos vão se adicionando ou,
até mesmo, interagindo de formas complexas. No caso da discalculia não-relacionada
a síndromes a influência da experiência de vida é maior. As influências
genéticas podem ser concebidas como fatores de risco que tornam ou indivíduo
mais vulnerável a ter uma dificuldade de aprendizagem. A interação entre os
genes e o ambiente atua de forma probabilística na determinação do desfecho
final. O fato de um indivíduo ser mais vulnerável a uma dada condição ou
comportamento não implica em um determinismo absoluto, apenas em risco. O
ambiente pode atuar de diversas formas para reduzir ou amplificar as
dificuldades.
O diagnóstico de discalculia
do desenvolvimento é extremamente importante. É apenas através do diagnóstico
correto que se torna possível planejar e implementar as intervenções
necessárias para prevenir ou minorar as consequências negativas da dificuldade
em matemática.
A discalculia do
desenvolvimento se associa a diversas consequências negativas a longo prazo. Os
adolescentes com discalculia persistente apresentam maior frequência de
transtornos externalizantes (hiperatividade, comportamento antisocial) ou
internalizantes (sintomas de ansiedade, depressão, baixa auto-estima) de
comportamento.
A dificuldade crônica de
aprendizagem desmotiva o indivíduo e contribui para que ele abane precocemente
a escola, reduzindo assim sua qualificação acadêmica e profissional. Em adultos
jovens foi observado que as dificuldades persistentes com a matemática são
preditivas de menor renda e maior probabilidade de desemprego, mesmo quando a
habilidade de leitura é estatisticamente controlada.
Os dados de pesquisa
disponíveis indicam, portanto, que a discalculia do desenvolvimento é um
transtorno que compromete uma parecela expressiva da população em
desenvolvimento e economicamente ativa, revestindo-se de enorme potencial para
prejudicar o desenvolvimento, bem-estar e realização pessoal.
A fisiopatologia, ou
mecanismos pelos quais as disfunções neuromaturativas predispõem o indivíduo a
ter dificuldades de aprendizagem da matemática são o foco de intensas pesquisas
no momento. Os dados de pesquisa mostram que a discalculia do desenvolvimento é
uma entidade heterogênea, associando-se comorbidamente a uma série de outros
transtornos, com diversos mecanismos cognitivos implicados.
Cerca de dois terços das
crianças com discalculia apresenta comorbidades, ou seja, a presença simultânea
de outras condições neurodesenvolvimentais. As principais comorbidades são com
o transtorno do déficit de atenção por hiperatividade (TDAH) e com as
dificuldades de aprendizagem da leitura e esrita (dislexia e disgrafia do
desenvolvimento). A comorbidade com TDAH indica que déficits nas funções
executivas e na memória de trabalho podem ser implicados nas dificuldades. Por
outro lado, a associação com dislexia sugere que, em parte, as dificuldades
podem ser atribuíveis a deficits no processamento fonológico, principalmente
consciência fonêmica.
A discalculia do
desenvolvimento tem também uma relação estreita com o transtorno não-verbal de
aprendizagem (TNVA). O TNVA compromete cerca de 1% da população em idade
escolar e consiste de dificuldades crônicas de aprendizagem caracterizadas por
alterações na coordenação motora e processos somatosensoriais, dificuldades
visoespaciais e discalculia. As dificuldades no TNVA são atribuíveis a um
déficit na capacidade do indivíduo fazer inferências não-verbais que compromete
seu desenvolvimento em diversos domínios. Comprometimentos secundários são
observados também na área da percepção e auto-regulação emocional e do
comportamento e cognição social, constituindo um fator de risco para
desadaptação social, incapacidade. O TNVA caracteriza o fenótipo cognitivo das
diversas síndromes que incluem a discalculia entre os seus sintomas.
O estudo das comorbidades
indica que dificuldades com o controle executivo, memoria de trabalho, habilidades
fonológicas e visoespaciasi são todos fatores cognitivos relevantes para a
compreensão dos mecanismos cognitivos subjacentes à discalculia. Além destes
mecanismos tradicionalmente identificados, uma hipótese contemporânea é que a
discalculia do desenvolvimento pode ser parcialmente ou ao menos em alguns
casos atribuível a um déficit em um sistema primitivo e não-simbólico de
representação de magnitudes (vide post abaixo sobre modelos cognitivos). A
pesquisa sobre os mecanismos cognitivos na discalculia é uma questão complexa,
desafiadora e extremamente relevante do ponto de vistá prático.
A relevância clínica,
educacional e social da discalculia indica que mais pesquisas são necessárias
para identificar suas causas, desenvolver métodos de diagnóstico e reconhecimento
precoce e, principalmente, programas eficientes de intervenção para reverter ou
minorar as dificuldades ou seu impacto.
O desenvolvimento de métodos
de diagnóstico e intervenção eficazes requer uma estreita colaboração entre
profissionais de saúde e educadores. As pesquisas sobre diagnóstico e
intervenção podem se beneficiar da caracterização dos mecanismos cognitivos e
genético-moleculares subjacentes às dificuldades.